Flávia Presoti[1]

Eliane Dantas[2]

Mentir é ato que acompanha a história da humanidade. A mentira não é um erro, é engano propositado, é ato intencional. Errar não carrega má intenção com o outro, pode advir de má intepretação do observado ou do escrito, da dificuldade de compreender algo. Não é mentira enunciar uma informação falsa que nos parece verdadeira. Mas mente-se ao enunciar algo como verdadeiro que cremos ser falso. É a intenção que separa a modalidade dos atos. Mentira é inverdade. Um mentiroso sabe, em consciência, que está a dizer falsidades.

Há quem defenda que a mentira é inaceitável em qualquer situação. Não são poucos os que apanharam dos pais quando tentavam esconder um copo quebrado ou uma aula matada. No desejo de ensinar as crianças a não mentir, a história italiana de Pinóquio – o boneco de pau que sonhava em ser de verdade e via o nariz crescer cada vez que mentia – correu o mundo. O provérbio “a mentira tem perna curta” é outro exemplo da velha tentativa de frear quem mente.  Coibir a mentira é educar para a ética. É ensinar a refletir e a agir sobre a melhor maneira de conviver. É entender como nossos atos afetam o outro, que nos cabe saber viver respeitando todos.

Para não sermos inflexíveis, podemos indagar: será que a mentira é sempre condenável?  E se for por razões humanitárias ou para esconder uma intimidade que a pessoa não quer revelar? Se a condenação absoluta e incondicional da mentira é difícil de ser feita, é preciso chegar a um consenso ético. Importa pensar que certos valores morais não podem ficar à mercê de interesses e ambições pessoais. Deve haver uma moral universal em alguns aspectos. Mentir – para destruir um desafeto, um grupo, uma empresa, uma instituição, uma família, um partido, um país, o adversário que for – não poderia valer na disputa econômica, ideológica, social, política, cultural. O apetite pelo poder, pelo dinheiro, pela vitória não pode justificar mentiras. Esses fins não podem justificar mentiras como meios. Estamos falando de valores. Como diz o filósofo Clóvis de Barros, “a vida em sociedade supõe alguma concordância sobre o valor das coisas e das ações humanas. Pelo menos daquelas que podem comprometer gravemente as relações sociais. É preciso fabricar algum consenso. Trabalho civilizador por excelência. Aceitação de alguns valores”.

E é nesse campo que as fake news – notícias fraudulentas – têm sido emblemáticas e se revelado eficazes quando o objetivo é destruir quem for ou o que for. Estamos falando de informação sabidamente falsa, construída com inverdades para destruir reputações e ganhar um cliente, uma eleição, um acordo, um cargo, uma fatia do mercado. Estamos falando da divulgação de informações falsas numa situação em que o mentiroso – por compromisso explícito, juramento, troca de favores, perversidade – deu a entender que diz toda a verdade e somente a verdade. É ação com má-fé. É fraude, logro, embuste.

Espalhar notícias fraudulentas não é novidade na sociedade, porém o problema agravou-se e ganhou mais atenção com a escalada da disseminação pela internet e pelas redes sociais, que têm sido utilizadas como verdadeiras máquinas de propagar mentiras. Não há dúvida de que as redes têm sido bastante eficientes como instrumentos da calúnia, da difamação, e no cumprimento de objetivos nefastos. O problema é grave; tem impactado a formação da opinião pública. Envolve instâncias econômicas, partidárias, midiáticas, legais, religiosas, geopolíticas, sociais. E tem sido objeto de estudo e de discussões no mundo.

As fake news se encaixam no que o sociólogo Boaventura Santos chama de produção de ignorâncias: “Produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os produtores estão plenamente conscientes”. O objetivo é “bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do qual seria possível superar a ignorância. Uma ignorância malévola, corrosiva e, tal como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as redes sociais têm um papel crucial na sua proliferação”. Para Boaventura, essa ignorância é a mais antidemocrática de todas, pois “priva a democracia dos fatos e, ao fazê-lo, converte a boa-fé dos que dela são vítimas em figurantes ou jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre perdem e, mais do que isso, se autoinfligem a derrota”.

Sim, fake news produzem ignorâncias, pois alteram fatos, percepções e opiniões e levam o cidadão a ignorar a realidade e a fazer julgamentos indevidos. Grandes líderes mundiais têm se servido delas como cálculo político. O presidente Donald Trump, na campanha eleitoral de 2016, afirmou e repetiu que Barack Obama fundou o Estado Islâmico (uma das mais temidas organizações terroristas do mundo) e que a cofundadora seria Hillary Clinton, sua rival naquela eleição. “Ele disse e repetiu com tanta convicção que muita gente acreditou; acabou sendo convencido. Tudo isso dito sem o menor constrangimento aparente”, comentou o escritor e ator Gregório Duvivier. Talvez a tática da repetição tenha sido aprendida com o Ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade“. E gente de qualquer ideologia tem usado esse movimento tático para criar tensão, culpar o outro, se livrar de uma acusação, vencer o adversário, justificar uma guerra, cumprir pequenos ou grandes objetivos.

Essa disputa pela Casa Branca é um dos marcos da era da “pós-verdade”, palavra do ano eleita pelo Dicionário Oxford em 2016, que assim a caracteriza: “Relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal”. Era na qual estamos inseridos quando parece que a busca pela verdade não interessa, favorecida pela descrença da população na política, na mídia e até na Ciência.

Em 2016, Trump tinha como seu principal estrategista Steve Bannon, sócio da Cambridge Analytica. A empresa “hackeou”, do Facebook, dados de dezenas de milhões de perfis através de algoritmos sofisticados para direcionar conteúdos pró-Trump. O escândalo veio a público na imprensa mundial e pode ser visto no documentário Privacidade Hackeada. Um esquema sofisticado de falta de escrúpulo, tendo o ódio e o medo como operadores políticos. Uma articulação de estratégias emocionais interpelando pessoas de forma pré-reflexiva, trabalhando a emoção antes da razão. Uma das estratégias foi a psicometria, ou seja, separar as pessoas por perfil comportamental para falar o que elas gostariam de ouvir. Uma estratégia de manipulação para bombardear com mensagens individualizadas, a partir de dados de Big Date trabalhados em larga escala por robôs.

No Brasil, uma investigação articulada pelo Facebook apontou evidências de disparos massivos de mensagens de ódio e fraudulentas por assessores e filhos do presidente Jair Bolsonaro, além de deputados do Partido Socialista Liberal (PSL), que usavam contas falsas e coordenadas em redes sociais. Contas que acumulavam 2 milhões de seguidores no Facebook e no Instagram. Pelo “comportamento inautêntico coordenado”, ou seja, que esconde a verdadeira identidade dos criadores, o Facebook removeu alguns perfis. O diretor de cibersegurança do Facebook, Nathaniel Gleicher, afirma que há “evidências técnicas que demonstram a conexão entre essas contas que derrubamos”. Segundo ele, “o comportamento enganoso das páginas envolvidas começou em 2018, mas a maioria das postagens são do final de 2019 e começo de 2020”. Os detalhes da investigação foram encaminhados à Polícia Federal numa decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.  Os advogados dos que foram bloqueados afirmam que o Facebook se equivocou, que se trata de censura prévia, atentado à liberdade de expressão, ou ainda que são investigações sem fundamento. Haveria uma rede de fake news que influenciou na eleição de 2018? Há um longo e coordenado trabalho de investigação a ser feito pelo Ministério Público e pela Polícia Federal.

Antes dos bloqueios das contas, o Congresso brasileiro já havia instalado a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. Estão sendo debatidos temas importantes, como conceito, criação de redes inautênticas, métodos de investigação para as autoridades chegarem à raiz do problema, transparência no ambiente virtual para haver liberdade com responsabilidade. São muitos os questionamentos que levarão à formulação de uma lei.

Uma das fake news disparadas durante as eleições de 2018 foi a da “mamadeira de piroca”. A pesquisadora Esther Solano conta uma conversa com uma senhora da periferia sobre o suposto fato (divulgado nas redes sociais como algo distribuído nas escolas e creches municipais por determinação do ex-prefeito Fernando Haddad e do Partido dos Trabalhadores).  Esther, ao dizer a ela que a história da mamadeira não era verdadeira, escutou uma “resposta maravilhosa”: “Por que eu deveria acreditar em você? Só porque é professora? Eu acredito porque apareceu no meu grupo de WhatsApp”. Esther analisa a resposta: “Que tipo de autoridade acadêmica represento se estou absolutamente distante dela? Ela está literalmente em outro universo (…) Eu não represento absolutamente nada, a academia não representa nada (…) Ela está se informando pela lógica do espaço privado, pela lógica do grupo, da família, da confiança”.

A posição e a reação da senhora encaixam-se no que o historiador Leandro Karnal chama de “seleção afetiva de identidade”, quando “os indivíduos apenas se identificam e ecoam as notícias que melhor se adaptam aos seus conceitos. Isso porque não buscam informar-se, mas, sim, apenas comprovar seus pontos de vista preconcebidos”. A crença da senhora na distribuição de uma mamadeira erótica revela alguns de seus valores e medos.

Esses acontecimentos também podem ser analisados pelo fenômeno das “bolhas virtuais”. A tendência é a pessoa seguir nas redes sociais quem ela tem mais afinidade em algum nível. Quando a notícia é compartilhada por um determinado círculo de convivência, a informação é entendida como verdade, formando uma bolha. A opinião contrária passa a ser taxada como absurda mesmo que possa ser comprovada.

Se as fake news têm se disseminado como praga social, se podem influenciar de maneira potente os cidadãos, como se defender dessa realidade? Como descobrir a falsidade de uma notícia? Não é tarefa fácil, principalmente para quem não foi educado para o pensar crítico, para quem sempre aceitou a versão oficial de um acontecimento e não indagou qual seria o avesso da história. O exercício de colocar em dúvida o lido, o escutado, o visto, o divulgado é pouco trabalhado na educação brasileira, seja na rede pública, seja na rede particular. Assim compreende parcela de educadores brasileiros, e daí advém tanta crítica ao ensino que foca na aprendizagem técnica e na preparação para testes, desprezando a formação para o aluno avançar na crítica e na consciência cívica e social.

O problema não está apenas entre os brasileiros. Um estudo da empresa global de cibersegurança Kaspersky, em parceria com a empresa de pesquisa Corpa, divulgado no portal UOL em fevereiro de 2020, mostrou que 70% dos latinos não sabem identificar ou não têm certeza se conseguem diferenciar o que é uma fake news. E 62% dos brasileiros também não, nos colocando na 6ª posição nesse ranking. Outra curiosidade do estudo é que 16% dos entrevistados desconhecem completamente o termo fake news e quase metade dos brasileiros (42%) ocasionalmente questiona o que lê na web. Dado que confirma a não formação para o pensamento crítico e a necessidade de uma educação que ultrapasse objetivos pragmáticos, imediatos ou corporativistas.

Há outros dados da pesquisa que chamam a atenção. Em média, um terço dos latino-americanos usa apenas as redes sociais para se informar diariamente e apenas 17% se informam em sites da mídia tradicional.  São os jovens entre 18 e 24 anos que mais usam as redes para saber o que está acontecendo em seu país ou região, e as pessoas na faixa entre 35 a 50 anos são as que menos se informam por meio dessas plataformas. Entre 25 e 34 anos estão os que mais compartilham e comentam fake news em seus perfis sem verificar a veracidade da informação. Os dados do estudo são excelentes para os propagadores de inverdades e confirmam a alta possibilidade de circular mensagens pelas redes sociais para influenciar a opinião alheia.

O estudo faz parte da campanha de conscientização “Iceberg Digital”, denominação interessante, pois a empresa compara fake news a um iceberg, explica seu pesquisador sênior Fabio Assolini: “Nem tudo o que vemos na internet é o que parece ser. Nas profundezas do mar, é possível esconder uma enorme massa de gelo, capaz de afundar um navio de uma só vez se acreditarmos apenas no que vemos na superfície (…) Ações aparentemente inofensivas podem gerar enormes danos pessoais e profissionais”.

Com o acesso à internet democratizado e crescente, o problema ganha escala. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último trimestre de 2018 e divulgada em 2020 revela que a internet chega a 79,1% dos domicílios do país e que 79,3% das pessoas com 10 anos ou mais têm telefone celular. No mundo, segundo dados da empresa GSMA (2018), mais de 5 bilhões de pessoas usavam aparelho celular e 3,6 bilhões de pessoas acessam a internet pelo celular.

Com internet e celular ao alcance de tanta gente, a disseminação de informações deixou de ser matéria-prima dos veículos de comunicação. Quem se interessar, mesmo sem ter formação específica ou qualificação, tem à sua disposição plataformas gratuitas como Facebook, Twitter ou Instagram. Os mais habilidosos podem se tornar influencer, valer-se de um canal no YouTube, de um blog, de um perfil em alguma plataforma para propagar suas ideias – bem fundamentadas ou fúteis, verdadeiras ou não –, que podem mudar um cenário político, causar pânico, conduzir as pessoas a determinada ação. A depender da habilidade comunicativa, do carisma, da trajetória de vida e profissional, do marketing, da capacidade de investimento e de convencimento, o comunicador extrapola fronteiras locais, regionais, nacionais. E há ainda o aplicativo WhatsApp como forte aliado para o envio fácil e rápido de um conteúdo que pode viralizar, ou seja, alcançar milhares, milhões de pessoas. Aliás, é o sonhado.

Todo um conjunto de aplicativos, plataformas e recursos tecnológicos, ao alcance de quem puder e quiser, reforça que é preciso unir esforços locais e globais para frear e punir os produtores e disseminadores de fake news. A profusão crescente de gente afoita pelo sucesso a qualquer custo agrava o problema. Como fazer? Eis um desafio muito grande para todos os envolvidos no combate à desinformação. Ao redor do mundo, pessoas, movimentos, agências, ativistas têm trabalhado pela busca da verdade checando os fatos, ou no jargão, fact-checking. Aliás, esta é uma ação distinta de organização do trabalho jornalístico que deveria servir como regra a quem almeja ser respeitado como comunicador e influencer digital.

Checar fatos significa confrontar histórias com dados, pesquisas e registros. Significa verificar o grau de veracidade das informações. A Agência Pública exemplifica: “Se um político jura que nunca foi acusado de corrupção, há registros judiciais que poderão atestar se é verdade. Se o governo diz que a inflação diminuiu, é preciso checar nos índices se isso realmente ocorreu. E se uma corrente diz que há um projeto de lei para cancelar as eleições, é preciso conferir nas propostas em tramitação se essa informação é real”.

No Brasil, existem ótimas iniciativas que podem ajudar as pessoas a checar  informações, como a Boatos.Org (www.boatos.org), E-Farsas (www.e-farsas.com), Agência Aos Fatos (www.aosfatos.org), Agência Lupa (piaui.folha.uol.com.br/lupa), Comprova (www.projetocomprova.com.br – reúne 24 organizações brasileiras de mídia) e Uol Confere (noticias.uol.com.br/confere). A Agência Lupa e a plataforma Aos Fatos fazem parte do programa de checagem de fatos do Facebook no Brasil.

Há quem queira se eximir de responsabilidades caracterizando fact-checking como censura. Foi esta a tentativa do deputado Kim Kataguiri e coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL) quando, em campanha para acabar com o regime semiaberto, noticiou nas redes que “um criminoso é solto a cada 30 minutos”. A jornalista Patrícia Figueiredo pediu as fontes, mas o movimento se negou a apresentar alegando se tratar de censura.  Ele poderia argumentar contra o regime semiaberto, isso é liberdade de opinião. Chamar checagem de informação de censura é tergiversar. Checar fatos é diferente de tolher o direito de expressão.

As consequências provocadas com fake news, inclusive de guerras, precisam ser expostas. A ucraniana Olga Yurkova, cofundadora do StopFake, fez um excelente trabalho nesse sentido (o grupo se transformou em uma sofisticada organização de comprovação de fatos em 11 idiomas). Em 2014, a refugiada Galyna Pyshnyak apareceu numa TV estatal russa contando, aos prantos, que soldados ucranianos haviam crucificado publicamente um menino de três anos de idade diante de sua mãe “como se ele fosse Jesus”. Para o jornalista Andrew Kramer (The New York Times), o vídeo foi “uma boa peça de propaganda”. Ele tem toda razão. A mulher, que de fato estava do lado da militância pró-Rússia, acabou contribuindo para a justificativa de intervenção na Crimeia, que foi anexada pelos russos.

Outro caso emblemático que inclinou a balança a favor de uma guerra envolveu a adolescente Nayirah al Sabah, de 15 anos, filha do então embaixador do Kuwait nos Estados Unidos. Ela assegurou que os soldados iraquianos faziam atrocidades com bebês prematuros de um hospital em seu país, onde disse ser voluntária: “Eles levaram as incubadoras e deixaram os bebês morrendo, jogados no chão frio”. O depoimento foi feito num momento em que a opinião pública americana estava dividida se os EUA deveriam intervir na Guerra do Golfo entre Iraque e Kuwait. A fala da menina foi repetida por senadores americanos e pela mídia, e a invasão acabou acontecendo. Mais tarde, uma investigação conjunta da Anistia Internacional, da Human Rights Watch e de jornalistas independentes descobriu que uma agência de relações públicas nos EUA, ligada à monarquia do Kuwait, havia construído a narrativa da menina. E, para atingir um de seus interesses – o domínio de parte do petróleo árabe –, os EUA acabaram bombardeando Bagdá. O Iraque reagiu queimando mais de 700 postos de petróleo. Desastre humanitário e ambiental impulsionado pela mentira.

No Brasil há muitos casos de fake news que poderiam ser listados, inclusive com final trágico, como aconteceu em 2014, no Guarujá, no litoral paulista. Depois da divulgação de um boato e um retrato falado da suposta criminosa em uma página do Facebook, a Guarujá Alerta, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi amarrada e espancada até a morte por moradores da cidade. Foi afirmado que ela estaria envolvida com o sequestro de crianças para a prática de rituais de magia negra.

O problema com as fake news tem se agravado e se alastrado; portanto, aumenta o desafio para o Sistema Judiciário. O Promotor de Justiça João Paulo de Carvalho esclarece que o Código Penal foi feito há muito tempo, bem antes dessa atual revolução tecnológica, e os delitos de calúnia, injúria e difamação eram de menor potencial ofensivo. Se, com a internet, crimes digitais têm maior potencial de destruição, pois não ficam restritos a pequenos locais e grupos, as penas devem ser revistas para serem justas, para criminalizar com mais firmeza determinados delitos. Para o advogado e professor Walter Capanema, “o legislador tem uma tarefa angustiante, pois está sempre atrasado. Se há um problema, e alguém percebe que ele tem relevância e faz um projeto de lei e é votado, nessa etapa já surgiu outro problema. O advogado levanta outro aspecto importante: “Uma lei penal não pode ser criada ao calor de um debate. Lei penal tem que ser muito bem pensada, calculada, discutida, pois vai trazer repercussão na vida das pessoas”. Os delitos de opinião que circulam na internet estão em debate, inclusive no Senado, que já aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 2.630/2020, sobre fake news. Este PL seguirá para a Câmara, e muitas personalidades têm solicitado a ampliação dos debates antes da aprovação final.

Diante das inúmeras consequências causadas pela disseminação de notícias fraudulentas, as plataformas, que manipulam dados e que geralmente ficam na posição de meros intermediários, estão sendo cobradas a ter uma ação firme no combate às fake news, ao discurso de ódio. A ação de bloqueio de contas nas redes sociais, principalmente de ativistas extremistas, já está ocorrendo. É um avanço, mas as respostas legislativas, jurídicas e regulatórias ainda não dão conta de todos os problemas e crimes digitais. Portanto, é importante que a sociedade colabore. Então, vamos a algumas dicas:

  • Desenvolva o senso crítico, duvide das coisas que lê, escuta, vê. E ajude crianças e jovens a fazer o mesmo.
  • Se a mensagem que você recebeu é demasiadamente estranha, emocionante ou sensacionalista,
  • Verifique se a informação tem fonte e autoria. Caso não tenha, desconfie. Quem mente não costuma assinar sua mentira.
  • Verifique a data de publicação. Há notícias antigas apresentadas como fatos atuais, o que as torna mentirosas.
  • Aprenda a se informar com fontes éticas, com jornalistas renomados, com autoridades que têm um histórico de vida respeitado, com agências e empresas que têm credibilidade.
  • Crie na sua empresa uma cultura de questionamento.
  • Oriente o seu funcionário, o seu colaborador, a não ler só o título da notícia recebida. Criadores de conteúdos falsos apelam para títulos chamativos.
  • Jogue no Google ou em qualquer outro buscador o título da informação recebida e verifique se a informação já se encontra em veículos de comunicação de credibilidade.
  • Se a notícia for falsa, ao divulgar o título no Google ou em outro buscador, provavelmente algum veículo de checagem de notícia já deve ter desmentido o boato.
  • Se você recebeu uma imagem como notícia e essa imagem conta uma história, salve a imagem no seu computador, entre no Google ou em outro buscador, e vá em “busca reversa por imagem”. Carregue a imagem no buscador e aperte o botão de busca; o resultado vai mostrar o histórico de onde essa imagem já apareceu. O mesmo é possível de ser feito pelo celular.

Uma boa dica para o cidadão brasileiro que deseja colaborar é o projeto Truco da Agência Pública, que visa principalmente verificar frases de políticos e personalidades. Basta enviar a informação para o e-mail truco@apublica.org. Outra possibilidade é por meio do aplicativo Eu Fiscalizo, disponível nas lojas virtuais. Este tem feito um importante trabalho em plena pandemia da Covid-19 identificando notícias que colocam vidas em risco, que contribuem para o descrédito da Ciência e das instituições globais de saúde pública. São desinformações que “ensinam” métodos caseiros para prevenir o contágio, que defendem o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina sem comprovação de eficácia científica.

Como visto, o mundo midiático está imerso em fake news que trazem trágicas consequências à sociedade, configuram violações de direitos e acarretam injustiças e destruição de reputações. Uma mentira pode desencadear uma guerra, levar à morte, disseminar o ódio, abalar a democracia, degradar a sociedade e o valor da palavra. É preciso que cada um de nós faça a sua parte buscando compartilhar somente aquilo que tem certeza de que é verdade. Quem compartilha fake news, consciente de tratar-se de inverdades, pode estar cometendo um crime. Empresas, civis, políticos, profissionais da comunicação, especialistas de todas as áreas, formadores de opinião, todos sem exceção, precisam urgentemente se atentar para a gravidade da não checagem dos fatos. Há muito para pensar, inclusive pais e mães que participam de grupos de WhatsApp da escola dos filhos e que se deixam levar por uma notícia sem comprovação, que pode provocar a demissão ou a destruição da carreira de um profissional.

É preciso lembrar que a retratação numa nota de rodapé, na coluna “Erramos” de um jornal, não reconstrói a honra da vítima. Tampouco o direito de resposta – dado dias, meses ou anos depois – recupera integralmente uma reputação. Muita gente tende a entender que “onde há fumaça, há fogo”. E, em sua maioria, os atingidos pela difamação não têm acesso a canais de comunicação que poderiam dar ampla voz à sua defesa.

É incrível que uma história flagrantemente mentirosa chegue a muita gente e tenha aceitação. Se a informação sempre foi e sempre será de grande importância para a sociedade, com o advento da internet e suas ferramentas, a disseminação de notícias deixou de ser algo exclusivo e centralizado pelos meios de comunicação (rádio, jornais, revistas, TVs e portais de notícias).  Embora o jornalismo sério trabalhe a informação cuidadosamente, mesmo que tenha a sua linha editorial definida, que busque apuração em fontes oficiais e que faça a checagem da informação em mais de um canal, muita gente prefere a informação que vem dos grupos de família e de amigos pelo WhatsApp. E, na maioria dos casos, a checagem da notícia é quase inexistente. Enfim, as pessoas acreditam mais naquilo que uma pessoa próxima compartilhou do que em um grande portal de notícia com credibilidade. E assim a disseminação de mentiras está democratizada. E a mentira com seus componentes folclóricos é mais clicável que uma verdade. Há um longo trabalho a ser feito em nome das relações éticas.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Flávia Presoti –  Empresária da comunicação, proprietária da agência Presoti Comunicação, especialista em comunicação empresarial e gestão de crise de imagem, diretora do Conselho Empresarial da Mulher Empreendedora da Associação Comercial de Minas Gerais (ACMinas) e apresentadora do podcast “As Não Lineares”, um canal de comunicação colaborativo feito por três mulheres nada linear disponível nas plataformas Anchor.fm, Dizzer, Spotify e podcasts Apple.

[2] Eliane Dantas – Jornalista / Escritora /Mestre em Educação / Assessora de Comunicação.